A rotina da consulta “normal” começa com a clássica pergunta: “O que o/a trouxe aqui? ” Após essa conversa, que utilizamos para a descoberta de sintomas, convidamos o paciente a “ir para a cadeira/mesa ao lado para fazermos o exame físico”. Nessa segunda etapa buscamos sinais, para depois compor o que chamamos de raciocínio clínico. Eventualmente precisamos de uma terceira etapa de solicitação e avaliação dos exames subsidiários, para fechar um diagnóstico e depois passar a uma conduta médica.
O comportamento de ouvir rapidamente o paciente, não examinar, e solicitar inúmeros exames, como “triagem” para uma infinidade de possibilidades é tido como inadequado, oneroso ao sistema, deseducativo e pernicioso pois, na presença estatisticamente possível de resultados falso positivos, leva a diagnósticos incorretos. Vários movimentos que também visam a redução de custos limitam os exames, com protocolos baseados em médias de pedidos, ou cursos mais prováveis do raciocínio clínico. Infelizmente essa prática administrativa leva, em alguns casos, a desvios de diagnóstico em casos mais complexos.
A sustentabilidade monetária, adicionada a oferta atual de tecnologia frugal – menos complexa e específica mas mais acessível – e principalmente a recente mudança da relação médico-paciente em tempos de pandemia, nos levam a admitir a possível separação dos sintomas e sinais, ou o divórcio da “anamnese” (a entrevista do médico com o paciente) do “exame”.
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Mesmo antes da Covid-19, já realizamos interações remotas com pacientes, mais eficazes nos casos que conhecemos e que tínhamos examinado fisicamente há pouco tempo. Nesses momentos, ouvimos e analisamos as queixas, modulando perguntas e avaliando emoções e informações trocadas por voz ou somente palavras escritas. Quanto mais experiente e atento o médico for, mais detalhes e direcionamento conseguirá da história clínica, e já teremos um esboço do raciocínio e possibilidades, mesmo antes do exame físico de consultório.
No novo normal, a frase que se segue a teleconsulta pode ser uma orientação terapêutica ou: “eu preciso lhe examinar; vamos marcar um horário no consultório”. Essa transição que já constava em nossa consulta era mascarada pelo movimento, quase contínuo, da mesa de conversa para a cadeira de exame. Aqui busco relativizar e questionar essa rotina.
Alguns médicos já perceberam essa possibilidade, e centralizam remotamente o atendimento neles mesmos, estando disponíveis por celular e teleconsultas, via web, e quando necessário, marcando “exames” em coworking médicos. Outro movimento que percebemos na mesma direção é o dos autoexames, realizados fora do ambiente clássico de saúde (consultório) por profissionais não médicos. Desde a medida de pressão nas farmácias, até exames de fundo de olho, existem equipamentos de fácil manipulação, baixo custo, integrados à rede. Muitos com inteligência artificial, que permite uma triagem inicial, sem a presença médica.
As ferramentas tecnológicas disponíveis não significam obrigatoriedade de utilização, mas sim parcimônia e bom uso. A legislação sobre esses processos é incipiente e necessária, mas não deve devolver o pêndulo para dentro do consultório unicamente.
Esperamos que mentes jovens, corajosas e abertas, abracem sem nenhuma vergonha a velha “magia negra”, que cura e alivia com pensamentos e palavras, interpretando hoje, todos os dados disponíveis, e não apenas os que eles mesmos obtiveram. Muitas dicas do futuro estão no passado. Bom presente!
Paulo Schor, médico oftalmologista, é professor da Escola Paulista de Medicina e da faculdade de medicina do Hospital Albert Einstein e diretor de inovação da Unifesp